Como potenciar Rúben Guerreiro? Que trabalho faz Nélson Oliveira no contrarrelógio? Conversamos com o diretor de rendimento da Movistar.
É uma obviedade que o ciclismo se profissionalizou a todos os níveis na última década. A referência atual é a Visma Lease a Bike, que otimizou os treinos em altitude e implantou uma metodologia de trabalho que permitiu vencer as três grandes Voltas na mesma época.
Com metade do orçamento dos rivais diretos, a Movistar passou pela crise dos 40 anos, que coincidiu com o ocaso de Alejandro Valverde: o último grande ano do “Bala” foi 2018 (13 vitórias), embora em 2019 ainda tenha levantado os braços cinco vezes. Desde então a equipa de Navarra não passa a fasquia das 20 vitórias.
Em 2024 o grupo liderado por Eusebio Unzué continuará um trabalho de desenvolvimento científico que visa dotar a estrutura de melhores condições. Uma necessidade à partida para a 45ª época no pelotão.
Fuga de jovens prodígios
Das 18 equipas do WorldTour, cinco monopolizaram as conquistas nas 35 corridas da primeira divisão em 2023. Visma Lease a Bike, UAE-Emirates, Soudal Quick-Step ficaram acima das 50 vitórias, já Ineos Grenadiers e Alpecin-Deceuninck superaram as 30.
Só seis corredores furaram este domínio no WorldTour:
- Marius Mayrhofer – DSM | Cadel Evans Great Ocean Race
- Mattias Skjelmose – Lidl-Trek | Volta à Suíça
- Matej Mohoric – Bahrain Victorious | Volta à Polónia
- Mads Pedersen – Lidl-Trek | Clássica de Hamburgo
- Valentin Madouas – Groupama FDJ | Clássica da Bretanha
- Arnaud de Lie – Lotto Dstny | GP do Québec
Os resultados estão indexados a grandes orçamentos, que por sua vez condicionam a política de recrutamento. As equipas com maior capacidade financeira têm prioridade na seleção dos melhores juniores e sub-23.
No recente mercado de transferências a Movistar viu talentos espanhóis serem desviados. Markel Beloki, filho de Joseba Beloki e campeão nacional júnior de contrarrelógio, assinou pela EF Education First; Igor Arrieta, filho do ex-Banesto/Movistar José Luis Arrieta, passou da Kern Pharma para a UAE; Álvaro García, campeão nacional júnior de fundo formado na Valverde Team, foi assegurado pela Israel Premier Tech.
O engenheiro industrial que marca o caminho
Como é que se dá a volta a um cenário complicado? Melhorando o rendimento da equipa. Essa é a prioridade do corpo técnico liderado por Iván Velasco e Xabier Muriel, que lideram o departamento que comanda o dia-a-dia da Movistar.
Velasco foi ciclista durante nove épocas e é engenheiro industrial. É o homem dos números e especialista em aerodinamismo, biomecânica e materiais. Ao lado tem Xabier Muriel, que sem ter sido ciclista chegou à direção da Euskadi-Murias e da Caja Rural sabendo que além de analisar dados é preciso refletir sobre o trabalho mental dos atletas.
Perguntamos a Iván Velasco sobre como potenciar um talento como Rúben Guerreiro, que ao longo da temporada é capaz de alternar momentos de glória e de máxima frustração.
“O Rúben é um corredor com muito talento que quando as coisas correm bem é capaz de ir além dos limites, mas quando correm pior vê-se afetado. Por isso está a treinar com o Xabier Muriel que dentro do departamento de rendimento é a pessoa que se encarrega desse trabalho específico.”
Iván Velasco
Para a nova época todos os setores foram reforçados com staff especializado. A estrutura da Movistar ronda os 140 trabalhadores, menos 20 do que a Lidl-Trek.
A nutrição é chave e Velasco confirma que nos estágios da Movistar come-se com a balança em cima da mesa ao estilo Visma. Este parâmetro está ligado ao aumento da velocidade no pelotão por isso chegaram à equipa mais dois nutricionistas.
Nélson Oliveira nunca saiu da elite do contrarrelógio
Ao diretor de performance da Movistar perguntamos também pelo caso específico de Nélson Oliveira, que em 2023 foi 6º no Mundial e garantiu que Portugal terá dois representantes no crono olímpico em Paris 2024.
Iván Velasco dedica horas a executar um trabalho invisível junto com o maior contrarrelogista português desta geração.
“Os ganhos no contrarrelógio devem-se a um processo contínuo que se tem vindo a desenvolver há anos e que visa otimizar o rendimento dos corredores através de testes na pista, desenvolvimento de produtos junto com os ciclistas e as marcas, correção da posição na bicicleta.”
Iván Velasco
Olhando só para os resultados pode pensar-se que o anadiense passou um período menos eficaz em 2021 e 2022, quando na realidade Nélson Oliveira nunca saiu da elite do contrarrelógio
No Mundial de Imola foi 11º e em Leuven 13º; em ambos os casos ficou a um segundo do top 10. Tomando os Mundiais disputados na última década como referência, em 11 presenças fechou sempre no top 15 e seis vezes ficou no top 10.
“O Iván ajuda-nos em tudo, mas no caso do contrarrelógio testamos muitas vezes no velódromo. São horas a corrigir a posição, a procurar um maior aerodinamismo e conforto. Por vezes os representantes das marcas estão presentes, por exemplo com a ABUS conseguimos ganhos importantes desde os Jogos Olímpicos de Tóquio com o novo capacete. Também tenho uns novos extensores e tudo isso ajuda.”
Nélson Oliveira
O CdA é a obsessão dos especialistas
Cada era tem a sua revolução tecnológica. Nos anos 90 foi o aparecimento dos pulsómetros e anos mais tarde foram os potenciómetros.
Hoje em dia o gold standard para fisiologistas e preparadores de contrarrelógio é o CdA (coeficiente aerodinâmico multiplicado pela área frontal projetada).
Para 2024 o bloco de especialistas no crono foi reforçado com as chegadas do bicampeão francês de crono, Rémi Cavagna, do pistard campeão da Europa e vice-campeão do mundo, Manlio Moro, e do campeão mundial sub-23, Lorenzo Milesi.
Juntam-se a Nélson Oliveira, uma espécie de extensão de Iván Velasco nas sessões na pista. Tudo para que a Movistar seja competitiva no esforço contra o cronómetro.
“O Iván tem testes que comprovam o que diz e nós confiamos nele. Estudamos a escolha das rodas, dos pneus, do fato de contrarrelógio. Quando vamos ao velódromo fazemos testes de oito voltas a uma potência e posição determinadas para lhe dar feedback sobre se podemos respirar, se vamos confortáveis. Estudamos os dados gerados nos testes, estes são introduzidos num software junto com dados do atleta e daí resulta o CdA. Com menos CdA conseguimos perfurar o ar melhor.”
Veremos se 2024 é o ano em que a Movistar volta a superar a barreira das 30 vitórias, o que não acontece desde 2017.