Derrota na Através da Flandres fragiliza a Visma antes dos Monumentos do pavê, mas mostra a dimensão humana de Wout Van Aert.
Não é o que mais vence nem o que gera mais simpatia nos fãs, mas Wout Van Aert é um grande campeão e vou explicar porquê.
Primeiro um pouco de contexto. Na quarta-feira, o belga regressou à Através da Flandres, onde se lesionou com gravidade em 2024.
No mesmo ano caiu na Vuelta a Espanha e ficou com o joelho num estado que só de ver arrepia. Dois acidentes graves e duas longas recuperações no espaço de seis meses.
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Foto: Charly Lopez
Três contra um
Voltemos à Através da Flandres. O ciclista da Visma Lease a Bike atacou na primeira subida ao Berg Ten Houte, fazendo uma primeira seleção no pelotão.
Houve quem reentrasse, mas na segunda passagem no Berg Ten Houte a Visma puxou em bloco e destruiu a corrida. Fez-me lembrar a 4.ª etapa do Tour de France de 2022, levando Van Aert a ganhar de amarelo após um solo magnífico em Callais.
Em Waregem, no final da Através da Flandres, eram três contra um: Matteo Jorgenson, campeão em título, Tijs Benoot vice-campeão em 2022 e Van Aert – todos da Visma; acompanhou-os Neilson Powless, 3.º em 2023.
Contra os prognósticos, ganhou Powless, fazendo-nos recordar Ian Stannard na Omloop Het Nieuwsblad de 2015 quando despachou três Quick-Step!
Épico, o maior triunfo de Powless. Por outro lado, é umas das piores derrotas de Van Aert.
“Sou o responsável por esta derrota porque fui eu a decidir para irmos ao sprint. Pedi ao Matteo e ao Tijs para controlarem e levarem-me à meta porque estava confiante de que podia ganhar o sprint, mas sofri câimbras no sprint e o Neilson Powless resultou estar mais forte. Fui demasiado egoista no final. Queria tanto esta vitoria, especialmente depois de todas as críticas que recebi, do azar que tive no ano passado. Por uma vez pensei só em mim.”
Van Aert na flash interview após a Através da Flandres.
Visma e Van Aert mostraram que são humanos
O homem que deu uma Gent-Wevelgem a Christophe Laporte e que ajudou Jonas Vingegaard a ganhar dois Tour de France pensou nele e pensou bem porque tem sido um soldado leal no batalhão da Visma.
Era o dia e não correu bem. Foi um erro tático que deixa o bloco tocado para a Volta à Flandres e para a Paris-Roubaix – que a estrutura não ganha desde Rolf Sorensen, em 1997, quando ainda era Rabobank, identidade que recuperará em julho próximo.
A Visma e Van Aert mostraram que errar é humano. A forma como se lida com o falhanço é, para mim, o que separa os bons atletas dos campeões.
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Campeão dentro de uma geração de virtuosos
Van Aert tem 49 vitórias, mas também foi segundo em 44 ocasiões. Há quem o considere um vencedor e quem opine o contrário.
Vejo-o como um campeão dentro de uma geração de virtuosos que banalizou as vitórias. Tem um Monumento, venceu clássicas importantes (Strade Bianche, Gent-Wevelgem, Amstel Gold Race, GP Plouay, Omloop Het Nieuwsblad). Tem ainda etapas no Tour, na Vuelta e fará a tripla quando for ao Giro, que ninguém duvide. Sem esquecer que conquistou medalhas em dois Jogos Olímpicos e se juntarmos estrada e ciclocrosse soma 12 medalhas em Campeonatos do Mundo.
Está atrás de Mathieu Van der Poel e de Tadej Pogacar? Sim, mas qual é o problema? Só se é campeão a partir de “x” Monumentos?
Esta cultura hiperexigente queima os atletas e há cada vez mais ciclistas que desde jovens sofrem problemas psicológicos, basta citar Cian Uijtdebroeks e Arnaud De Lie. Alguém dúvida do talento destes dois? Eu não, mas a pressão é tanta para ganhar, ganhar e ganhar que alguns colapsam.
É um reflexo do que se passa nas camadas jovens de qualquer desporto. Tenho dois filhos – de sete e nove anos – que jogam à bola. Um dos treinadores grita nos treinos, reprova os falhanços e dividiu o grupo em atacantes (os bons) e defesas (os maus).
Um dia, o meu filho perguntou porque é que ele jogava pouco e respondeu à própria pergunta concluindo que ele não fazia parte dos bons. Fiquei chocado e triste.
Estamos a criar uma geração de “competidores” preparados para ganhar e cuja autoestima varia segundo o resultado. Por outro lado, afastamos da prática desportiva os que não têm “mentalidade competitiva” porque quem os lidera só vê o resultado, sinal de que não sabem o que estão a fazer.
É por isso que considero Wout Van Aert um campeão; numa era em que escasseiam os valores, em que o processo é desvalorizado, devia valer mais uma boa pessoa do que uma medalha.