Artigo de opinião de Gonçalo Moreira onde se abordam verdades inconvenientes relacionadas com o doping no ciclismo e noutras modalidades.
Vamos falar de doping, mas vamos falar de todo o doping e não só o que rodeia o ciclismo.
Há semanas foram notificados pela ADoP Frederico Figueiredo (Sabgal-Anicolor), vencedor do GP Jornal de Notícias, e Luís Gomes (Gi Group Holding-Simoldes-UDO). Motivo? Anomalias no passaporte biológico.
Notícia negativa para o ciclismo nacional, na sequência de escândalos de maior envergadura: W52-FCP (2023), Liberty Seguros (2009) e LA-MSS (2008).
Com tantos casos é normal as pessoas associarem o ciclismo ao doping. Menos normal é a percepção de que o ciclismo é diferente de outros desportos, como se houvesse dopados de primeira e dopados de segunda.
Decidi escrever este texto ao ler no diário As o que disse Jesé Rodriguez, ex de Sporting e Real Madrid, ao youtuber ‘Mowlihawk’ no programa ‘Batmowli’.
“Havia muita gente que se metia muita merda para render. Isso antes não estava tão controlado como agora. Não estou a criticar nem a julgar ninguém, mas era assim. O que se passa é que se calhar publicamente não saiu.”
Jesé Rodriguez
Epidemia de nandrolona no futebol italiano
Veio-me à memória a epidemia de nandrolona no futebol italiano em 2001. Deram positivo Pep Guardiola, Fernando Couto, Edgar Davids, Jaap Stam, Frank De Boer…
A nandrolona é um esteroide anabolizante ideal para ganhar massa muscular e assimilar grandes cargas de treino. Em 1998, o então técnico da Roma, Zdenek Zeman, não fez amigos quando afirmou que “o futebol deve sair das farmácias. No nosso ambiente há demasiados fármacos”.
Couto e Guardiola levaram quatro meses. O técnico do Manchester City viu várias instâncias confirmarem a sentença até que seis anos depois um tribunal de Brescia o considerou inocente.
No último ano, o caso mais mediático no futebol envolveu Paul Pogba (Juventus): positivo por testosterona sintética e suspensão de quatro anos. Apelou para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) que aceitou a teoria de suplemento contaminado e a sanção caiu para 18 meses.
Sabem quem defendeu o francês? Mike Morgan, advogado que representou Chris Froome (salbutamol) e Alberto Contador (clembuterol).

Foto: Iraia Calvo
A intencionalidade transforma as sentenças
Há anos que leio sobre doping e há um padrão que é evidente: atletas com recursos económicos e sólidas equipas legais obtiveram desenlaces mais favoráveis.
Não é o mesmo levar nove meses por negligência do que ficar estigmatizado por uma sanção de quatro anos. A intencionalidade transforma as sentenças.
A campeã de Roland Garros, Iga Swiatek, deu positivo por trimetazidina e levou um mês de suspensão. Declarou ter tomado um medicamento contaminado e o argumento foi aceite pela Agência para a Integridade do Ténis (ITIA).
Trimetazidina melhora o fluxo sanguíneo no coração e ajuda a regular o ritmo cardíaco. Um doente cardíaco, por exemplo, pode completar um exercício de resistência a 150 bpm em vez de 180 bpm. Pedala mais tempo, com menor sensação de cansaço e gerando menos lactato.
O número um mundial, Jannik Sinner, testou positivo para o esteroide anabolizante clostebol – popularizado pelo programa estatal de doping da antiga República Democrática da Alemanha.
Sinner diz que o fisioterapeuta Giacomo Naldi o massajou sem luvas provocando a contaminação por um spray cicatrizante aplicado num dedo. A ITIA ilibou o atleta, mas a Agência Mundial Antidoping recorreu para o TAD e propõe suspender o tenista por um a dois anos.
Em 2023, o também tenista Stefano Battaglino – que nunca passou do lugar 760 no ranking – foi suspenso por quatro anos por um positivo por clostebol.
Há verdades tão inconvenientes que preferimos ignorá-las
Estes dois casos aparecem depois de Simona Halep ter dado positivo no US Open de 2022 por roxadustat.
O estimulante combate a anemia e o El País descreve-o como EPO em pastilha. Atua enganando o organismo ao informar que o oxigénio não está a chegar às células, o que desencadeia uma resposta natural do corpo que aumenta o fabrico de hemoglobina e de glóbulos vermelhos.
A ITIA sancionou a romena com quatro anos, mas o TAD aceitou a teoria da contaminação e Halep foi suspensa por nove meses. Em 2015, Carlos Oyarzun (Aviludo-Louletano-Loulé Concelho) levou quatro anos por um positivo com o mesmo medicamento (à época ainda em fase de ensaio e designado FG-4592).
No ténis preocupa a onda de positivos, mas também a saúde dos atletas. Juan Martín del Potro foi número 3 mundial e ao Relevo contou um relato triste do pós-carreira.
“Devo ter mais de 100 injeções entre perna, anca e costas. Fui infiltrado, queimaram-me nervos, bloquearam-me tendões. É um sofrimento que tenho diariamente. Levanto-me e tomo entre seis e oito pastilhas, entre protetor gástrico, anti-inflamatório, analgésico, um para a inflamação, um para a ansiedade.”
Juan Martín del Potro
NBA não subscreve o Código Mundial Antidopagem
O objetivo do artigo é incitar à reflexão e ao debate. É óbvio que há dois pesos e duas medidas na aplicação das sentenças e nada tem a ver com o desporto em si, mas com a capacidade de defesa do atleta.
Há uma perceção enviesada acerca do doping? Claramente, mas defendo a teoria de que há verdades tão inconvenientes que preferimos ignorá-las… como este artigo que rapidamente cairá no esquecimento.
Cito os desportos mais populares dos Estados Unidos para reforçar o argumento. Quem não adora a NBA? Eu adoro, mesmo sabendo que a NBA não subscreve o Código Mundial Antidopagem.
Só durante os Jogos Olímpicos os jogadores da NBA seguem as regras da FIBA. A liga tem um código interno que permitiu a Tristan Thompson (Cleveland Cavaliers) ser suspenso por 25 jogos (a época regular tem 82 jogos) após dar positivo por Ibutamoren e Ligandrol – hormona de crescimento e potenciador muscular, respetivamente.
Muito fica por escrever, desde logo as próprias dificuldades que a AMA atravessa. Dezoito agências nacionais antidopagem expressaram por carta dúvidas acerca de como a AMA resolveu os positivos de 23 nadadores chineses em vésperas dos Jogos de Paris 2024. Sem entrar em detalhes, porque o tema é complexo, adianto-vos que a nossa “amiga” trimetazidina é peça central do caso.