Ricardo Scheidecker ajuda a refletir sobre o momento do ciclismo. Há uma bolha no mercado? É viável a Superliga? Há milhões da Arábia Saudita?
Ricardo Scheidecker fala sem papas na língua. É caso único por conhecer por dentro a dinâmica do ciclismo internacional.
O responsável por marcar as diretrizes desportivas na Tudor é uma voz autorizada para analisar o estado da modalidade.
Pensar o ciclismo é urgente. Há um lote restrito de equipas milionárias que especulam no mercado e uma crise que afeta a classe média do pelotão.
“O ciclismo vive acima das suas possibilidades, a classe média cada vez existe menos. Há equipas que controlam o mercado e podem-se permitir pagar dessa forma. Dou o exemplo da Quick-Step: ganhamos o ranking três vezes e fomos segundos duas vezes nos seis anos em que lá estive. Com um orçamento que não chegava aos 20 milhões de euros quando outras equipas acima dos 30 não nos batiam. O Patrick fez um excelente trabalho.
Ricardo Scheidecker ao TopCycling.
“Não estamos no mercado da loucura”
Como é que a bolha do mercado afeta a economia das equipas? O português pega no caso concreto da Tudor, uma ProTeam que tem estrutura de WorldTeam.
Menos recursos obriga a ter arte e engenho para atrair corredores. Da trajetória e ambição do projeto à credibilidade do staff.
“Se há equipas com recursos infinitos, que também vivem do humor de proprietários, não podemos ir contra isso. Para atrair corredores acreditamos que é o serviço que conta, temos que pagar o que é justo, mas não estamos no mercado da loucura nem vamos estar. Estive na Tinkoff e vivi essa realidade: quando o Oleg [Tinkov] disse que queria Peter Sagan nem houve discussão. Estamos numa bolha que faz com que haja contratações que estão fora do que é a realidade do ciclismo. Há três ou quatro equipas muito ricas e as outras têm que justificar aos seus patrocinadores o que andam a fazer.”
Criação da Superliga
Há dinheiro a circular e há muito que se fala na criação da Superliga. As equipas queixam-se de que a distribuição das receitas é desigual.
UCI, ASO, RCS e Flanders Classics são os maiores organizadores de eventos e parte fundamental no debate. Aceitarão os organizadores um novo jogador à mesa?
É o que pretende o consórcio ONE Cycling, promotor da Superliga. Richard Plugge (Visma) e a Ineos lideram este lobby.
“Podem falar de ligas, milionários que vêm e compram… Só acredito quando chegarem à frente da senhora Marie Odile Amaury e lhe disserem ‘estão aqui estes diversos milhares de milhões e queremos comprar o seu evento’. Fazer alguma coisa sem as corridas da ASO é uma piada e podem dizer que se unem, mas é tudo prosa, as pessoas não têm noção da modalidade, do valor dos eventos.”
Dinheiro saudita pode mudar o ciclismo
De onde vem o financiamento da ONE Cycling? Em teoria, da Arábia Saudita, através da SRJ Sports Investments, que faz parte do fundo público de investimento (PIF) do reino do petróleo.
O PIF meteu no bolso Rafael Nadal, Cristiano Ronaldo e Jon Rahm. Na Fórmula 1 entraram via Aston Martin e no Dakar são parceiros da ASO. No futebol estão na Premier League e na La Liga.
Este fundo materializa a “Visão 2030”, projeto do herdeiro ao trono da Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman. É este PIF que a Reuters diz ter 250 milhões de euros para investir no ciclismo.
“Temos organizadores, equipas e UCI, a entidade reguladora. Os organizadores querem as melhores equipas. A equipa de segunda divisão quer estar nos melhores eventos pela visibilidade que justifica o investimento perante os patrocinadores. É uma contradição: se sou organizador e quero os melhores para que quero ter equipas de segunda divisão? Estive no ‘board’ da AIGCP, trabalhei na UCI e ninguém me diz como se pode encontrar estabilidade de maneira transversal. Falei com o Richard Plugge, conheço essa gente toda e estive em dezenas de discussões. As equipas de segunda divisão têm zero garantias e as de primeira divisão têm todas as garantias.”
No golfe os sauditas ganharam o braço de ferro ao PGA Tour criando um circuito milionário – LIV Golf – e recrutando jogadores de topo.
A disputa acabou com a fusão dos circuitos e sem restrições para os atletas escolherem os eventos em que participam. Pode a Superliga ser o LIV do ciclismo e neste caso a ASO seria o PGA Tour?
O futuro dirá, por agora a exposição do ciclismo ao investimento do Médio Oriente já é considerável. Três WorldTeams têm patrocinadores da região, o Saudi Tour e o UAE Tour são provas de grande envergadura, há parcerias da ASO e da RCS com organizadores locais e os Mundiais de 2028 (estrada) e pista (2029) serão em Abu Dhabi.