Há dias sentei-me no sofá sem plano. Enquanto fazia “zapping” vi que tinha um apontamento pendente:
“How the Beatles Changed the World. “Ok”, pensei, “vai ser noite de documentário”.
Entre o “Twist and Shout” e o histerismo da Beatlemania, o primeiro de vários factos curiosos – foram os Beatles a primeira banda a fazer uma digressão de estádio a nível mundial.
As salas pequenas e a falta de preparação da polícia numa “tournée” pelos Estados Unidos provocavam o caos nos concertos. Os desmaios eram frequentes – e achacados à emoção de ver Paul, John, Ringo e George – e as lesões nas costelas junto com ataques de ansiedade eram comuns. Foi assim em Melbourne, em 1964, como relata o jornal “The Age” num artigo de 15 de junho desse ano, tudo porque 250 mil pessoas foram receber a banda na chegada à cidade.
Do caos nasceu uma certeza: os Beatles tinham que atuar em estádios ou em sítios com capacidade para receber dezenas de milhares de pessoas. Há um concerto que ficou na história e que à época bateu recordes de audiência – 56 mil pessoas estiveram no Shea Stadium, em Nova Iorque, a casa da equipa de beisebol dos Mets.
Menos conhecidas foram as duas atuações de 24 de junho de 1965. Ao estilo das grandes voltas, que até ao início dos anos 90 conservam as famosas jornadas duplas. Os Beatles teriam dado excelentes ciclistas porque duas atuações por noite, haja endurance!
Voltemos a esses concertos em Milão. O palco escolhido foi o velódromo Vigorelli, com o mítico Pepino Di Capri a abrir.
Segundo o beatlesbible.com, 7 mil pessoas viram o concerto da tarde e 20 mil o da noite, num Vigorelli que sentava 22 mil espetadores. Um fiasco explicado pelos altos preços dos bilhetes, o facto do primeiro concerto ser em pleno horário de trabalho, e um calor de morrer.
Pormenores históricos à parte e colocando os Beatles à margem, centremo-nos na maravilha de velódromo que é o Vigorelli, que o meu colega e expert de pista, Luis Román Mendoza, apresenta neste artigo como o “Scala” do ciclismo. Talvez a mais famosa casa de óperas do mundo, a segunda pele da soprano Maria Callas durante a década de 50.
As tábuas vermelhas eram a imagem de marca do Vigorelli, que logo aí marcava diferenças pelo tipo de madeira escolhida para a pista: abeto vermelho proveniente do Vale de Fiemme, em plenas Dolomitas, nada de pinheiro siberiano que hoje em dia é a madeira mais comum nos velódromos e que oferece excelentes resultados, mas não tem o “glamour” vermelho da madeira italiana.
A pista era tão rápida que parecia um tapete vermelho estendido para os ícones da época. Fausto Coppi escolheu o Vigorelli para bater o recorde da hora em 1942 (45,848km), em plena Guerra Mundial, até Jacques Anquetil o superar (46,159km) passados 14 anos e no mesmo local.
Hoje em dia este já não é o principal velódromo italiano, mas será eternamente símbolo de uma época de glória do ciclismo transalpino. Por isso o velódromo Vigorelli foi poupado à humilhação e salvo por um movimento cidadão quando parecia condenado.
Vigorelli é história e não só do ciclismo. Da mesma forma que a Madonna del Ghisallo é local de peregrinação 365 dias por ano e não apenas quando lá passa a Volta à Lombardia.
Velódromo Nacional de Sangalhos
Há lugares assim, místicos. Senti-me privilegiado quando visitei o santuário de Covadonga e subi aos Lagos. Voltei a sentir-me especial quando neste Natal fui a Anadia visitar o Museu Duas Rodas, carinhosamente alojado no reverso das tábuas do velódromo de Sangalhos.
Foi uma viagem no tempo, à época de ouro não só do ciclismo português, mas também da região Centro, apaixonada por motas e bicicletas. Aqui não há “spoilers”, só admiração.
Foi emotivo aprender sobre o Sport Club Sangalhos, conhecer que antes do Centro de Alto Rendimento a localidade teve nos anos 60 uma pista descoberta – ali ao lado – onde se chegaram a fazer etapas da Volta a Portugal. Dessa pista nem rasto, apenas uma foto com pouco detalhe. Às vezes é melhor assim, fantasiar com a “belle époque” do ciclismo português, velódromo “à pinha” e gente bem vestida para ver passar os ciclistas. No novo velódromo tudo é diferente para melhor.
A dada altura pedi para ficar um momento sentado nas tábuas e dei por mim a recordar a primeira medalha de Portugal na pista – foi em 2014 quando o Ivo Oliveira se tornou campeão mundial júnior de perseguição individual.
Também tive um flashback das madrugadas de Tóquio, de narrar no Eurosport a proeza da Maria Martins ao tornar-se a primeira pistard portuguesa Olímpica.
E ao recordar a Tata lembrei-me do Ivo, que comigo e com o Paulo Martins comentou esse Omnium e a dada altura ficou sem palavras pela emoção de ver a Tata bater-se como uma campeã pelo diploma!
Anadia, a pista de Sangalhos, o Centro de Alto Rendimento são a segunda casa destes e de outros atletas. Têm com a pista uma relação umbilical.
Por tudo o que senti e sem afrontar a Senhora da Graça – a nossa Madonna del Ghisallo – parece-me que Anadia e a pista de Sangalhos têm tudo para ser o Vigorelli português. Local de culto, de aprendizagem e de sonhos.
Enquanto me despedia com os olhos até uma próxima, perdido no meu mundo ia ouvindo “Don’t let me down”. Foi o dia em que os Beatles tocaram para mim, em Anadia.
Por: Gonçalo Moreira
Fotografia: Redes sociais Velódromo Nacional de Sangalhos; Redes sociais Velódromo de Vigorelli.
Subscreve a newsletter semanal para receberes todas as notícias e conteúdo original do TopCycling.pt. Segue-nos nas várias redes sociais Youtube , Instagram , Twitter , e Facebook.