Português na Indian Pacific Wheel Race – 5,500 km’s numa só etapa, no outro lado do Mundo
Era este o objectivo do André, acabar uma corrida de 5,500 km’s a solo, em autonomia, sem apoio, e sem reservas de hotéis ou locais de estadia, a indian pacific wheel race (IPWR).
Por norma sempre que vemos artigos deste tipo, ou filmes, ou reportagens, a história acaba sempre com sucesso, mas nem sempre de sucesso se vive neste tipo de aventuras épicas.
No caso do André, ele foi forçado a abandonar esta aventura ao fim de 11 dias, por um problema que teve com os seus sapatos, que lhe afectaram bastante os pés provocando calor e dores insuportáveis.
Este detalhe é só mais uma prova da dureza que é ter como objectivo pedalar longas horas todos os dias, ininterruptamente durante 3 semanas. Esse era o seu objectivo inicial, mas rapidamente se apercebeu de que iria demorar mais tempo.
Qualquer pequeno pormenor que seja menos bem preparado pode deitar por terra uma aventura deste género (pois não existe qualquer apoio ou suporte exterior), os sapatos não eram nem novos nem velhos, simplesmente não tinham sido utilizados tantas horas e dias seguidos (alguns dias o André pedalou mais de 13 horas).
Esta foi a progressão do André enquanto conseguiu pedalar:
Dia1 – 280km’s
Dia2 – 255km’s
Dia3 – 256 km’s
Dia4 – 193 km’s
Dia5 – 246 km’s
Dia6 – 90km’s
Dia7 – 379km’s
Dia8 – 143 km’s
Dia9 – 152 km’s
Dia10 – 140km’s
Dia11 – 73 km’s, perfazendo um total de 2200 km’s em 11 dias.
Ainda assim apesar de não ter cumprido o seu objectivo, que era terminar a IPWR, o André viveu uma aventura de 11 dias, nos quais passou por algumas experiências que te vamos passar, para além das fotos de um país tão longínquo como a Austrália.
” Um dos factores que faz o Indian Pacific Wheel Race (IPWR) umas das mais difíceis corridas de ultra-distância do mundo é a distância entre locais para abastecimentos, especialmente nos primeiros 2400 km’s. da prova.
Há cerca de 5 troços em que a distância entre locais para abastecimentos é superior a 180 km, obrigando os participantes a carregar comida e água suficiente para um mínimo de 8 horas, bem como calcular quanto tempo vão demorar a chegar porque há certos locais que não estão abertos 24 horas por dia.” – André Batista.
Pelos relatos do André, após 3 dias de corrida/viagem, qualquer pormenor como temperaturas altas ou vento de frente podem destruir-te não só fisicamente como mentalmente, tem que se estar psicologicamente preparado ou não se continua.
Tem que se planear bem o que se leva, tanto ao nível da hidratação, como alimentação porque se algo sai fora do plano, está-se longe de tudo.
O terreno plano e longas rectas no “meio do nada” era a característica do início desta longa corrida. Se por um lado era menos difícil do que fazer subidas e descidas constantes, por outro lado era psicologicamente cansativo, além de que é uma zona muito árida, descoberta, com vento constante (muitas vezes de frente) e temperaturas altas durante o dia (45º).
Por vezes a estratégia foi tentar dormir durante o dia e pedalar à noite, com menos calor e menos vento.
Quando na Europa falamos em terreno plano, não é bem a mesma coisa do que falar em terreno plano na Austrália, para teres uma ideia, o André viu finalmente uma descida digna desse nome ao fim de 6 dias a pedalar. Já dá para perceber melhor a parte do “psicologicamente cansativo”.
Os sapatos começaram a ficar insuportáveis, com altas temperaturas escaldavam os pés, o que tornava a progressão dolorosa. No dia 7 o André tentou improvisar umas entradas de ar extra no carbono para tentar continuar mesmo com dores.
Com abastecimentos ou com apoio este problema era facilmente resolvido, trocava de sapatos e continuava, mas nesta corrida os ciclistas estão por conta própria, só com a sua bicicleta como companhia.
A tentativa de improviso de entradas de ar nos sapatos não surtiu o efeito suficiente para aliviar o calor, ainda fez bastantes km’s. assim , mas o sofrimento com os pés prolongou-se e para combater as dores, pedalou muitas horas a tentar mover os pés dentro dos sapatos o que originou problemas nos joelhos e anca.
Para teres uma ideia das sensações e dificuldades vividas num desafio desta extensão, deixamos-te estas palavras do próprio André:
“A prova em si foi espetacular, e eu apenas fiz a parte chata do percurso, uma estrada com poucas ou nenhumas curvas no meio do deserto sem qualquer paisagem para apreciar.
O meu momento mais humilde foi quando me deparei com a magnitude e distâncias que esta prova tem. Num dos primeiros dias dei por mim a olhar para o Garmin e ver que tinha acabado de fazer perto de 100 km pela manhã, com um vento brutal de frente e velocidade média perto dos 18 km/h. em terreno plano.
Numa de inspirar alguma confiança em mim próprio e apreciar o progresso da manhã, decidi olhar para o mapa, para ver o quanto estes 100 km’s. representavam no geral. Para meu choque, os 100 km’s. que me tinha custado tanto a fazer eram quase invisíveis no mapa. Isso fez a minha confiança desaparecer por completo e foi substituída por um pânico que durou umas belas horas. “Estes 100km’s. foram duros “pa c@@@@@@.” Eu nunca vou conseguir chegar ao fim, vou demorar 3 meses para chegar ao fim… “Ahhh P@@@@”, onde é que eu me fui meter. Este pensamento assombrou-me durante bastante tempo…”
Fizemos uma pequena entrevista ao André, que te deixamos aqui, bem como alguns conselhos dele para quem se quer iniciar neste tipo de aventuras.
Entrevista
Marretaman – A primeira pergunta que se impõe é (meio em modo brincadeira) viste cangurus durante a viagem?
André – Infelizmente não vi nenhum canguru vivo durante a minha viagem. No deserto os cangurus seguem a chuva em busca de agua. Vi bastantes cangurus na berma da estrada que foram atingidos por carros e camiões. Outros participantes relataram que nas montanhas depois de Melbourne, centenas de cangurus nas planícies. Eu apenas vi um Emu (parecido com uma avestruz mas com uma cara assustadora).
Marretaman – Fizeste algum tipo de preparação física especial para esta aventura?
André – Devido à minha operação ao joelho, tive que fazer bastante reabilitação, como treino de força e flexibilidade. De resto, dias grandes na bicicleta. Sabia desde que a corrida foi anunciada que não iria estar na forma física desejada mas esta corrida era algo que tinha que fazer.
Marretaman – Como é pedalar 6 dias seguidos, sem se encontrar uma só descida?
André – É algo estranho. De certa forma, algo bom porque se não há descidas, não há subidas. Isto ajuda bastante em calcular distâncias por hora e quanta comida e água precisamos até ao próximo reabastecimento, quase sempre a mais de 100 km de distância. Mas sim, quando apanhei a primeira descida em 1380 km foi algo de especial!
Marretaman – Sentiste-te em perigo por alguma altura? Fosse por estares longe de tudo sem abastecimento, ou por alguma outra razão?
André – Nunca me senti em perigo devido à distância entre reabastecimentos ou devido a cobras e aranhas durante a noite. Apenas tive um momento em que um camião grande (road train, um camião com 3 atrelados grandes) decidiu ultrapassar uma caravana e me obrigou a sair da estrada. Tive pouco mais de um segundo para reagir e se não tivesse saído da estrada imediatamente, não estaria aqui a contar a história.
Marretaman – Procuravas locais especiais para pernoitar ou dormir, ou era simplesmente à beira da estrada?
André – Tentei sempre dormir perto de cidades ou reabastecimentos. Desta forma, podia comer antes de me deitar e comer mal acordasse. Houve apenas 2 noites onde fiquei em áreas de repouso à beira da estrada, devido a cansaço e distância entre cidades.
Marretaman – Achas que podias ter escolhido melhores sapatos para este tipo de aventura?
André – “Ahahah”, sim, certamente. Comprei estes sapatos Bont especialmente para esta corrida pois pensei que sendo o sapato mais largo à frente, me ia dar mais conforto em dias grandes. Em voltas de treino os sapatos nunca foram os mais confortáveis mas ignorei esse sinal e como infelizmente não tive tempo para fazer um treino de 4 ou 5 dias na bike, não pensei que se tornasse um problema tão grave como foi.
Marretaman – Como vês o facto de terem querido cancelar a corrida por causa da morte de um participante no ano passado, já depois de estar muita gente inscrita?
André – Há bastantes teorias em relação a isto. Uns acreditam que os organizadores sempre souberam que não podiam fazer a prova este ano devido a pressão de tribunais e advogados, mas resolveram anunciar a prova com restrições grandes de segurança para acender a chama em nós. Outros acreditam que eles planeavam fazer a prova em condições normais mas foram obrigados a cancelar devido a ordens do tribunal. O que interessa é que a prova decorreu, apenas 10 atletas que estavam inscritos não compareceram na linha de partida e cerca de 5 atletas resolveram participar agora que a prova tinha sido cancelada. Extra a tudo isso, tenho a certeza que a prova irá decorrer no próximo ano. Ora com os mesmos organizadores do ano passado, ora de uma forma mais informal em que uma data é acordada e o pessoal arranca todo à mesma hora, ora de uma forma um pouco mais organizada com uma equipa de voluntários que irá encabeçar a organização da prova, como o que acontece na Europa com o Transcontinental Race.
Marretaman – Qual o dia em que o homem da marreta te apareceu, ou em que levaste a maior marretada?
André – Acho que não levei nenhuma marretada em termos físicos. Isto sendo uma corrida de endurance os ritmos são bastante baixos, tive dias a fazer médias de 103 batimentos cardíacos por minuto. Diria que o cansaço mental é o mais complicado de gerir. No 4º dia o corpo estava quase em modo de choque, não habituado a fazer quase 800km em 3 dias seguidos. Pernas cansadas e a primeira vez a fazer 180 km entre reabastecimentos. O 8º dia também foi complicado devido a um dia 7 enorme na bike com 380 km feitos e apenas consegui dormir 2 horas. Esse 8º dia foi curto, apenas 144 km, mas foi bastante complicado de completar.
Marretaman – É verdade que à medida que os dias vão passando, o facto de teres que dormir com os teus próprios meios (em vez de ser numa cama de hotel) diminui o descanso e recuperação?
André – Sim, tens sempre que fazer uma mistura entre dormir em tenda/”bivy” e dormir em hotéis, não só para recarregar baterias. Lavar o equipamento, calções e camisola, é super importante porque à medida que suas, sais minerais saem do corpo e cristalizam-se na roupa, o que acelera irritações na pele e pode mesmo causar feridas. Dormir na tenda é mais rápido e mais flexível, mas com um “setup” tão minimalista como o que eu levava, significa que o conforto é relativamente baixo, eu acordava a cada meia hora para mudar de posição. Dormir em hotel é muito mais confortável mas tens que ser super disciplinado para te levantares da cama quentinha depois de apenas 4 horas de sono.
Marretaman – Vais voltar a fazer a prova?
André – Sim, tenho o IPWR atravessado e vou voltar no próximo ano para completar o que comecei este ano.
(Fim entrevista).
Para quem quer começar uma viagem de bicicleta
“Eu recomendo vivamente tentar fazer uma viagem de bicicleta em autonomia total. É uma experiência espectacular e de certa forma reacende aquele sentimento de quando éramos crianças e a bicicleta era o nosso único método de transporte para nós levar a grandes aventuras pelo mundo.” – André Batista
Alguns conselhos:
1 – Leve é bom. Leve é rápido.
2 – Todo o equipamento deve ter mais que uma função
3 – É importante tomar conta da bicicleta mas ainda mais importante tomar conta do ciclista (água, comida, protecção solar, creme para o rabo, música)
4 – Algo vai correr mal, é preciso estar preparado para isso. Problemas mecânicos, Frio/Calor, subida ou parte do trajecto que demora mais tempo que o planeado.
5 – Hotel é fácil de planear e pode funcionar como ponto de retorno. Acampar é mais aventuroso mas torna a bicicleta mais pesada e encurta distâncias possíveis.
6 – O “Strava Heatmaps” é espectacular para encontrar estradas e trilhos diferentes e possivelmente melhores do que as estradas normais.
7 – Não é uma corrida, é uma aventura. Pedala mais devagar, pára para tirar fotos, fala com os locais. Aproveita a experiência ao máximo.
Com a proliferação do “BikePacking”, há bastantes opções no mercado de malas para a bicicleta com preços bastante apetecíveis. As malas de selim com mais de 10 litros são óptimas para completar a primeira expedição e não precisa uma bicicleta especial para estas aventuras, bicicleta de estrada ou montanha servem.
Exemplo de expedição de fim de semana para começar:
Distância – 300 km total, 150 km por dia.
Hotel ou Acampar – Hotel
Bicicleta de estrada
Malas – Mala de selim 10L + Mala de avanço 0.8L
O que levar:
Roupa: casaco para a chuva, Gillet, T-shirt, camisola, calções e sapatos leves ou havaianas, Bandas reflectoras para os tornozelos.
Ferramentas: Dropout de desviador, Multi-ferramenta, 1 camera de ar + kit de reparação, Super cola, Canivete suíço + isqueiro.
Higiene: pasta para os dentes e escova, protector solar e creme para os calções, toalhitas de bebé.
Extras: luz frente e 2x luz traseira, powerbank + cabos telefone, GPS e luzes.
Se quiseres ver parte da preparação desta longa viagem, bem como a lista completa do material que o André transportou na IPWR clica neste nosso artigo “Um português pelo mundo – 5,500 km’s de bicicleta em autonomia no outro lado do planeta“.
O facto de ter tido a coragem de se propor a completar esta mítica corrida, por si só já é uma vitória, simplesmente neste tipo de aventuras épicas há muitos factores inesperados que podem surgir, e foi o que aconteceu.
Nem sempre se conseguem os objectivos à primeira tentativa, João Garcia (alpinista portguês) não subiu o Evereste à primeira, mas já foi ao cume da montanha mais alta do mundo por mais do que uma vez, e dessas vezes em que fez o cume, todas as experiências vividas nas tentativas sem sucesso o ajudaram na escalada de sucesso.
O André, já prepara novas aventuras de bicicleta por esse mundo fora.
Podes ver outras das suas viagens pesquisando o seu nome no nosso site, ou indo directamente ao seu Website Cycling Grand Tour.
Se queres saber tudo sobre a Indian Pacific Wheel Race, deixamos-te aqui um documentário sobre esta mítica corrida, onde falam da origem, da história e mais pormenores sobre a mesma.
Luís Beltrão
Mr.B.