O Topcycling fez uma etapa da Vuelta a Espanha com a Visma | Lease a Bike (LAB) e conversou com Gabriel Martins, um dos responsáveis pela nutrição de uma das melhores equipas de ciclismo do mundo.
Os corredores comem com a balança na mesa? Qual o protocolo de consumo de hidratos de carbono? As cetonas melhoram o rendimento?
Questões esclarecidas por Gabriel Martins nesta entrevista.
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“Era um sonho trabalhar ali“
Gabriel Martins estudou nutrição na Universidade do Algarve e estagiou no Futebol Clube do Porto, onde conheceu Vítor Hugo Teixeira – “talvez o melhor nutricionista desportivo do mundo”.
Tirou o mestrado em nutrição desportiva em Madrid, antes de seguir para Doutoramento na área do doping. Criou um podcast de nutrição desportiva e numa conversa com o nutricionista da Israel Start-up Nation surgiu o convite para a primeira experiência no ciclismo.
Ficou três anos no projeto, até que o telefone tocou. Gabriel Martins subiu de patamar no ciclismo ao tornar-se um dos responsáveis pela nutrição na Visma | LAB.
“Estava prestes a assinar por outra equipa e mesmo à última hora o meu colega, agora meu chefe na Visma, enviou-me mensagem. Quando veio o convite não houve hesitações, era a opção acertada. Era um sonho trabalhar ali, por tudo o que representa.”
Gabriel Martins ao TopCycling.
O dia-a-dia de um nutricionista no World Tour
A descrição tem de ser dividida entre um dia normal em casa e um dia em corrida ou em estágio.
Quando não está no terreno, o trabalho passa pela planificação do que está para vir.
“Definir a duração e potência de cada corredor na etapa, e os corredores, para depois definir as necessidades energéticas e toda a suplementação que temos de organizar. Tudo isso é feito em trabalho com o treinador (…) Definimos através de um documento com toda a informação e estratégia nutricional da corrida, que depois é enviado ao resto da equipa. Uma parte para os chefs, outra para os massagistas e auxiliares. Precisam de saber o que empacotar, o que levar para a corrida e ter uma simplificação da estratégia toda que preparamos, para saber em cada dia o que têm de fazer e preparar quando estiverem na corrida.”
Este trabalho significa uma articulação prévia com o treinador da equipa e está ligado às estratégias da equipa para cada etapa.
Há uma forte componente de planificação, mas não deixa de ser um trabalho de constante adaptação.
“Temos uma parte mais matemática, que nos permite ter dados preditivos de potências médias, mas depois também a parte de mostrar esses dados ao treinador, para ele analisar e depois dar-nos informação: Se concorda ou não com as nossas estimativas tendo em conta, por exemplo, se está previsto um ciclista estar em fuga ou mais protegido no pelotão numa certa etapa“, explica Gabriel Martins.
Toda a gente é um par de mãos
Em corrida, a natureza do trabalho é diferente. Cada profissional deixa de ser só mecânico, nutricionista, etc.
Para Gabriel Martins toda a gente é um par de mãos que ajuda na corrida. Chegando ao pé dos corredores ou com eles ao hotel cada um volta à sua profissão.
“Tenho que esperar que os dados da corrida estejam disponíveis, falar com os cozinheiros para ajustar o jantar – porque uma coisa é o que planificamos outra é a energia que eles gastaram realmente – falar com os cozinheiros sobre como vamos fazer esse ajuste e perceber se têm tudo preparado (…) Estar com os atletas no jantar, que também é um equilíbrio delicado – estar, sem parecer que somos polícias da alimentação – não queremos passar essa imagem, queremos dar a ideia de que somos um facilitador.”
A relação com os ciclistas
A nutrição pode ser um tema sensível e na Visma | LAB há um esforço para que o momento da refeição seja o mais relaxado possível.
Há apps que indicam as quantidades e uma balança na mesa. Como se portam os corredores?
“Não lhes damos a comida pesada e embalada porque queremos que se sintam confortáveis com o momento da refeição. Os atletas têm um mini buffet, onde está uma balança. A desvantagem de não darmos já tudo pesado é eles poderem comer menos ou mais do que tínhamos indicado, mas estamos dispostos a sacrificar isso. Eles são os primeiros a reportar se comeram menos ou mais e tentamos adaptar o plano. Nesta adaptação tentamos ter vários parâmetros em consideração, incluindo a vertente humana, porque não podemos ser 100 por cento rigorosos.”
Quais as maiores dificuldades em termos de nutrição para os ciclistas?
A resposta difere de atleta para atleta, mas um problema relativamente comum são os dias de descanso. Em competição o estômago trabalha em esforço para digerir a quantidade de alimento, situação contrária à de um dia de descanso e isto representa desafios a nível fisiológico e alimentar.
A evolução do ciclismo profissional
Para além da WorldTeam, Gabriel Martins também trabalha com a equipa sub-23.
Para o português esta é “talvez a parte mais gratificante do trabalho” dada a vertente mais pedagógica.
“Queremos ensinar e dar as ferramentas para que quando chegam ao WorldTour tenham conhecimento na área da nutrição. Gostamos de pensar que corredores que estão nos sub-23 e ascendem ao WorldTour têm sempre mais conhecimento do que corredores que contratamos a outras equipas.”
Esta reflexão levou-nos a uma conversa sobre a evolução do ciclismo.
Em primeiro lugar, porque os ciclistas estão a ganhar corridas cada vez mais jovens?
“Antes só duas ou três equipas é que tinham acesso a nutricionistas, psicólogos, etc. Está tudo tão desenvolvido que os ciclistas, agora, quer seja a nível nutricional, preparação física, recuperação, psicológico, têm um conjunto de ferramentas talvez cinco ou sete anos mais cedo do que há 10 anos.”
Melhoria geral do rendimento
Avanços que se refletem numa melhoria geral do rendimento.
Gabriel Martins aponta três fatores que justificam o fenómeno:
- Hidratos de carbono: “Tinha-se a ideia de que quanto menos se consumisse, melhor, até por uma questão de conforto intestinal (…) A evolução vem, sobretudo, nos últimos 10 anos. A Sky começou a liderar essa revolução na nutrição com o James Morton. Sabemos agora as quantidades mínimas e as quantidades a que podemos desafiar o intestino a conseguir digerir e garantir aumentos de rendimento consideráveis.“
- Recuperação: “A parte com mais impacto. Sabíamos a importância que tinha, mas o enfoque era influenciado pela onda do ginásio e culturismo, excessivamente focado na proteína. Tem havido um desvio dessa linha de pensamento para aquilo que é o mais cientificamente aceitável, que é o enfoque nos hidratos de carbono.”
- Quantificação: “O ciclismo é um desporto centrado em dados e tem uma grande vantagem que são os potenciómetros, que permitem esse cálculo da energia impressa no pedal e que se traduz num gasto energético específico. É vantajoso a nível de monitorização de energia e equilíbrio do gasto energético dos ciclistas, que não é feito por estimativa, mas por um aparelho que nos dá indicações muito precisas.”
As cetonas melhoram o rendimento?
Tocámos em vários assuntos, desde a suplementação que foi desenvolvida em conjunto com a equipa e testada pelos atletas em vários cenários diferentes.
Também abordamos com Gabriel Martins o protocolo de consumo de hidratos de carbono em competição, em que um mínimo de 90 g por hora (ou 120 g em situações críticas) é a regra.
“Não penso que haja margem para menos (…) Considerar que pela potência ser inferior devemos passar a 60g/h… para já estamos a comprometer a recuperação (…) e termos que fazer um trabalho de recuperação de hidratos que é desnecessário se o conseguirmos fazer em cima da bicicleta. É importante manter essa quantidade que consideramos mínima.”
Tema controverso é o uso de cetonas, que parecem estar cada vez mais em voga no pelotão.
As cetonas melhoram o rendimento? A perspetiva dentro da equipa é clara.
“É considerado um suplemento como a creatina, nitratos, etc, (…) tem algum potencial para ajudar na recuperação depois de provas muito duras, essa é a parte mais estudada. Existem ‘claims’ de que pode aumentar o rendimento físico e cognitivo, mas a evidência é muito mais escassa. A parte da recuperação é a única em que há evidência mais sólida.”
Penetrar na fibra da Visma | LAB
A conversa com Gabriel Martins é longa, mas ajuda-nos a penetrar na fibra da Visma | LAB.
Quisemos fechar dando a palavra ao nutricionista sobre o que sente ao trabalhar numa das maiores estruturas de ciclismo profissional.
“O nível de conhecimento e profissionalismo de toda a gente é extraordinário (…) Tudo dentro de um equilíbrio muito bom, onde podemos rir e ser sérios nos momentos certos. Um ambiente muito bom de desenvolvimento pessoal, uma vontade de fazer melhor sem nos comparar com os demais. É parte do que faz a equipa única, não nos comparamos com ninguém, só com nós próprios. E um sentimento de pequenez muito grande, de que posso aprender tanto, mas um sentimento que dá vontade de fazer mais e melhor. É uma estrutura que nos trata tão bem que nos dá vontade de fazer sempre mais para ajudar a equipa. É um gosto e um orgulho enorme trabalhar com a Visma | LAB.”