Devem soar os alarmes na UAE após a Volta ao Algarve de João Almeida? Como será no Giro de Itália? A análise do jornalista Gonçalo Moreira.
A melhor notícia da Volta ao Algarve é que o ciclismo está vivo e os aficionados nacionais estão a debater. Sobre performance, tática, opções de carreira. É o efeito João Almeida!
Durante o contrarrelógio da Algarvia muitos espetadores escreveram-me preocupados. As expetativas eram altas: desde 2020 que João Almeida não corria no Algarve e o próprio assumiu que ia à prova para tentar ganhar, em entrevista ao TopCycling por altura do Natal.
Não ganhou, aliás, chegamos à etapa de Lagoa sabendo que não ganharia: 24 segundos sobre Filippo Ganna – bicampeão mundial de contrarrelógio – era pouca margem. No entanto, o pódio estava ao alcance pela boa subida ao Malhão e por se ter defendido na Fóia. Sem o lesionado Marc Hirschi e já tendo começado com seis (em vez de sete) ciclistas era difícil impor ritmos e assumir a corrida. Mesmo assim, o pódio era possível. Só que João Almeida ficou aquém das expetativas.
Há falhas a corrigir? Para isso servem as corridas de preparação. É motivo para alarme? Só se não confiarem no processo desenvolvido ao longo deste ano e meio de trabalho na UAE-Emirates.
Conversei com João Almeida que confirmou que fisicamente se tinha sentido bem, que os números tinham sido bons e que já apontava ao Tirreno-Adriático.
Há aspetos que me levam a crer que não há motivo de alarme para o Giro de Itália, para o qual parte com menos favoritismo do que Remco Evenepoel e Primoz Roglic, ambos já vencedores de grandes Voltas e teoricamente mais fortes no contrarrelógio.
João Almeida está contente com as alterações na bicicleta, tanto na transmissão como nas rodas, considera a máquina mais rápida e fiável. Em Lagoa não teve problemas mecânicos, mas de comunicação com o carro. Podia ter apertado mais porque tinha gás para o fazer e a um corredor inteligente não é preciso apontar o óbvio; para mim isto são boas notícias.
O voltista mais regular da época
Este é o mesmo ciclista que em 2022 foi 5º na Vuelta a Espanha e lutou pelo pódio no Giro de Itália até abandonar por Covid. Bastava ter fechado top cinco e João Almeida teria sido o voltista mais regular de 2022 já que só Jai Hindley (1º no Giro e 10° na Vuelta) e Louis Meintjes (7º no Tour e 11º na Vuelta) andaram perto. Parece fácil andar sempre com os melhores…
Guardei alguns comentários de espetadores feitos no calor do momento.
- Henrique84: “Perdeu o bom contrarrelógio individual em prol de quê??”
- MWM: “Parece-me que o treino para montanha lhe anda a afetar o contrarrelógio.”
- Miguel: “Acho que a resposta deve estar na troca de equipa. Ainda continuo na mesma opinião quando ele se transferiu para lá iria atrasar a sua progressão. Olha o que o Rui Costa fez quando saiu de lá.”
- Miguel Albuquerque: “O Gonçalo é generoso com os nossos ciclistas e bem. Mas sejamos realistas, o João leva 2 anos nesta tendência de ir perdendo qualidades, inclusive a ler as corridas. E a equipa parece estar subtilmente a tirar-lhe o tapete. Por este andar vai ter de trabalhar para Formolo no Giro.”
- Leonardo Pena Simões: “O Gonçalo está conservador há 2 anos, desde q o João saiu da Deucunick, não foi o CRI desta volta ao Algarve apenas a dizer isso. O João tem potencial pra melhorar, mas não vamos inventar desculpas fosse o João de outra nacionalidade e a opinião seria mais assertiva.”
Tentarei responder às dúvidas. O que “perdeu” no crono foi ganho aonde? Responde o treinador do atleta, Íñigo San Millán, ao TopCycling: “Tinha visto dados dele… era um corredor que começava explosivo e vimos que em subidas prolongadas lhe custava. Trabalhamos esse aspeto; mesmo que se tenha ressentido um pouco nessa explosividade, no contexto dele de corridas por etapas era imperativo estar com os melhores ou perto deles em subidas de 15, 20 ou 30 minutos. Agora temos que retomar essa explosividade.”
Na Volta à Catalunha triunfou pela primeira vez acima dos 2000 metros e na Volta a Burgos ratificou a progressão em subidas longas ao ganhar em Lagunas de Neila… pós-Covid!
San Millán aponta um aspeto chave na metodologia de treino: a progressão ano a ano. Em termos fisiológicos João Almeida é um predestinado, mas há arestas a limar.
No caso dos resultados no contrarrelógio da Quick-Step para a UAE é preciso ter em conta que se o atleta sempre correu com Specialized e troca para Colnago requer um tempo de adaptação, mais ainda quando a “cabra” de 2022 chegou com atraso. Tadej Pogacar ganha de qualquer maneira… mas o esloveno é de outra galáxia. Desde que a equipa foi criada, em 2017, a UAE não venceu qualquer contrarrelógio se excluirmos campeonatos nacionais e resultados obtidos por Pogacar.
Por agora, na UAE os resultados no contrarrelógio são inferiores aos obtidos na etapa na Quick-Step. Por outro lado na equipa belga não era tão fiável na alta montanha. O equilíbrio pode chegar em 2023: “Fisiologicamente e metabolicamente os sistemas energéticos subindo uma montanha são iguais aos de fazer um contrarrelógio. Utilizas muito as fibras tipo dois, é um esforço muito glucolítico onde se produz muito lactato e há que oxidá-lo a energia outra vez. É um esforço praticamente idêntico. O João tem suficiente peso para poder fazer um crono razoável sem perder tanto tempo para um corredor grande – por exemplo, Filippo Ganna – e ter peso para a montanha”, explica o chefe de performance da UAE, San Millán.
Quanto ao bloco para o Giro, questionei Joxean Matxin, responsável pela parte desportiva da UAE se tinha ficado satisfeito com a prestação da equipa e Matxin reconheceu que quer a equipa mais em linha com a Vuelta. Também reafirma que o líder é João Almeida e para isso estará rodeado por “ciclistas que entendam os 360 graus do ciclismo que é ganhar 48 corridas e ser a melhor equipa do mundo. Isto implica que em certo momento do Giro certos corredores que me dão vitórias têm que estar para o João Almeida”.
A filosofia será a mesma: ciclismo total ao estilo Jumbo-Visma, ganhar etapas, geral e o que vier. Só que até agora a UAE não demonstrou a mesma organização dos rivais e sobre isto Rui Costa foi tácito: “A Jumbo trabalha bem porque coletivamente sabia para o que ia. Estruturalmente está bem desenhada porque não prepara um corredor para o Tour, prepara oito ou nove. Na UAE esqueceram-se desse facto, prepararam o Tadej e mais dois, o resto foram uns à Suíça, outros ao Dauphiné.”
Na abertura da atual temporada é visível o cuidado da UAE em rodear Pogacar de Rafa Majka, George Bennett, Tim Wellens e Domen Novak. O bloco do Giro sofrerá reajustes, mas João Almeida não é o bicampeão do Tour de France e por isso Jay Vine foi desviado do Algarve para o UAE Tour, objetivo estratégico da equipa. No Giro será o braço direto do português; acredito nisto porque foi o próprio João Almeida e embora a progressão do aussie seja espetacular não acredito que desrespeite a hierarquia da equipa.
Além do australiano irão os habituais Diego Ulissi, Davide Formolo e Alessandro Covi; se contarmos com Pascal Ackermann e um lançador totalizamos 12 etapas ganhas na prova. Qualidade sobra, mas falta um trepador e eu gostava de ver Finn Fisher-Black entre os selecionados, mesmo sem ter qualquer grande Volta nas pernas.
Também espero que reconsiderem o papel dos gémeos Oliveira; tanto Rui como Ivo são de grande utilidade porque são todo o terreno, rolam forte no plano e controlam a média montanha, tanto são capazes de saltar a ataques como levar um pelotão inteiro à roda e em termos de espírito de grupo são colegas estupendos (entre estágio e Giro são dois meses juntos).
Recorro novamente a Íñigo San Millán para concluir. O treinador fala com o atleta quase todos os dias. Há uma entrega total de um ao outro porque só assim o processo funciona. Uma das fases críticas é quando as coisas não saem como o atleta espera.
“Gosto de ensinar ao ciclista o como e o porquê. Muitas vezes o corredor tem dúvidas; sabem que têm que fazer uma subida – para serem competitivos – a 6,1 ou 6,2w/kg e ainda estão em 5,9 ou 6,0w/kg… e dizem ‘ainda me falta’… e tu respondes ‘tranquilo João que estamos há uma semana em altitude e em altitude os números são mais baixos’ (…) Há que dar-lhes essa tranquilidade para que confiem no processo. Se não sai bem mudamos ou a mim cortam-me a cabeça.”
Há uma coisa que é importante esclarecer: no jornalismo não deve haver patriotismo. Eu narro uma vitória do Tadej Pogacar com a mesma emoção que quando ganha o Rui Costa, é a proeza em si que me faz subir as pulsações e não o bilhete de identidade. Estando a dois meses do objetivo, criticar o João Almeida agora é precipitado e sentenciá-lo ainda mais.
Posso contextualizar melhor a preparação dele do que, sei lá, do Tao Geoghegan Hart. O nível de acesso ao corredor, treinador e diretor é distinto, se fosse o mesmo de certeza que poderia ter explicado melhor porque desde que conquistou o Giro em 2020 o britânico só voltou a ganhar na Comunidade Valenciana este ano…
No final de maio veremos se o veredito é OK ou KO para João Almeida. O meu feeling é que a fiabilidade do corredor, aliada à evolução em certos aspetos do treino, lhe vão permitir ocupar um lugar importante na hierarquia do Giro de Itália.
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