Pode Portugal ter um campeão de uma grande Volta? Devemos ser moderados nas expetativas que transmitimos aos aficionados? Há quem defenda esta teoria. No entanto, será justo não valorizar um corredor que se sente capaz de ganhar?
João Almeida é ambicioso, cerebral e capaz de lidar com a pressão. Não sou eu que o digo, mas Joxean Matxin, máximo responsável pela parte desportiva da UAE:
“Em nenhum momento o vi sentir a vertigem de ter que liderar, nem quando pus corredores como [Diego] Ulissi, [Davide] Formolo ou [Fernando] Gaviria a trabalhar para ele. Assumiu a responsabilidade, embora eu tenha tentado sempre trocar a palavra responsabilidade por confiança.”
2022 – A transição
O ano de 2022 foi de transição porque do material ao treino tudo mudou da Quick-Step para a UAE. João Almeida está agora mais à vontade com o staff na hora de comunicar e de reivindicar um espaço vital num plantel espetacular.
Quanto ao treino explica que “estava habituado a fazer mais séries e menos base. Agora sinto que treino mais, faço mais base e menos séries. Em termos de carga é um treino parecido, mas há maior componente de endurance. É radicalmente diferente do que estava habituado, mas adaptei-me bem”.
Íñigo San Millán
A pessoa com quem trabalha diretamente é Íñigo San Millán, diretor de alto rendimento. Falam quase todos os dias e analisam o treino com o software Training Peaks. Conversam, trocam ideias e entre ambos há uma boa química como conta o preparador:
“Gosto de conhecer o corredor e começar a ter dados. Tinha visto dados dele… era um corredor que começava explosivo e vimos que em subidas prolongadas lhe custava. Trabalhamos esse aspeto; mesmo que se tenha ressentido um pouco nessa explosividade, no contexto dele de corridas por etapas era imperativo estar com os melhores ou perto deles em subidas de 15, 20 ou 30 minutos. Agora temos que retomar essa explosividade.”
Atleta e staff coincidem num ponto: sem Covid-19 teríamos tido João Almeida no pódio do Giro!
Íñigo San Millán conta que “quando foi diagnosticado com Covid o João fez a etapa com sintomas. Como com qualquer outra doença o rendimento cai e nos dias anteriores estava a incubar. Aí foi quando passou de 3º a 4º na geral, mas se não tivesse sido por Covid teria lá estado, sem nenhuma dúvida. Mínimo pódio”.
A filosofia de Matxin
Joxean Matxin acrescenta que não vai ao Giro lutar pelo pódio porque a filosofia passa por tentar ganhar. O pódio poderá ser bom dependendo das circunstâncias, mas o objetivo passa por discutir corridas como a UAE fez na 18ª etapa da Vuelta quando colocou Almeida ao ataque a 85km do fim numa manobra com participação de Brandon McNulty, enlaçando mais adiante com Ivo Oliveira e finalmente com Marc Soler, atletas que descaíram da fuga.
É uma forma agressiva de correr que vai ao encontro da visão do português:
“Já fiz quatro grandes Voltas e na última semana estive sempre à altura dos adversários, às vezes até melhor. Por exemplo, na Vuelta entrei mal e sem a preparação que queria, mas na última semana estava melhor. No Giro igual. De facto na última semana continuo a ter boa forma física e não tenho medo de atacar se houver pernas.”
João Almeida
Fazer uma “Almeidada”
O estilo é inconfundível. João Almeida raramente sobe na frente, mas também quase nunca o vemos descolar. Matxin e San Millán, tal como a maioria dos aficionados portugueses, vivem com ansiedade a já famosa subida à Almeida.
“O João regula muito, é inteligente e é um corredor em progressão consciente de que tem que continuar a melhorar. O exemplo que dou sempre é Burgos [etapa com final em Lagunas de Neila]:atacaram e morderam o isco e o João deixou-os seguir. É difícil ter a cabeça fria para não responder. Nós ficamos nervosos, mas pouco a pouco encostou e ganhou essa etapa. Fez uma ‘Almeidada’, já é a assinatura dele”,
conta San Millán.
Vídeo
Vuelta a Burgos 2022, etapa 5 – Lagunas de Neila
O estilo Almeida
Matxin aprofunda a análise e explica que o estilo de subida reflete “a forma de ser do João, que se entende que abrem um gás excessivo prefere manter esse gás para o final e não no início da subida. Entende que não deve fazer um sobre-esforço no princípio da subida porque se faz um já não tem o segundo sobre-esforço. Gasta paulatina e não explosivamente. Entende que o corpo dele é assim, é o estilo Almeida. Há que tentar melhorar sempre um pouco a posição para que ele não tenha que gastar esse sobre-esforço em fechar espaços, que o faça um colega, mas isso significa que quando ficam 20 na frente possivelmente já não temos esse colega. Há margem para melhorar neste aspeto”.
Almeida e Pogacar segundo San Millán
Este estilo contrasta com o do indomável Tadej Pogacar. San Millán, professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Colorado, treina os dois ciclistas.
Pedimos-lhe que aponte semelhanças e diferenças entre Almeida e Pogacar. “Mentalmente são parecidos porque são ambiciosos. Fisiologicamente um Tadej aparece a cada 20/30 anos, mas o João continua em progressão e eu gosto de saber qual a progressão ao longo dos anos. Vi a do Tadej e foi firme; com o João tenho a primeira parte e agora terei mais, portanto confio que vai continuar a melhorar. O João é um projeto especial porque lhe tenho muito carinho, é uma pessoa educada e agradecida. Temos que o mimar e continuar para a frente.”
A conversa com Íñigo San Millán é quase uma aula e entende-se o porquê da química entre treinador e atleta. A postura didática de um vai ao encontro da vontade de aprender do outro.
“A leitura que [João Almeida] faz dos watts, das pulsações, das sensações… não tens que lhe explicar muito. Ao ser professor universitário gosto de os educar e antigamente era difícil porque para os ciclistas era ficção científica – lactato, fisiologia, metabolismo da gordura e dos hidratos de carbono. Agora, quando falas com alguém como o João, falas como se fosse um estudante porque são conceitos que ensinamos na universidade. Gosto de ensinar ao ciclista o como e o porquê. Muitas vezes o corredor tem dúvidas; sabem que têm que fazer uma subida – para serem competitivos – a 6,1 ou 6,2w/kg e ainda estão em 5,9/6,0w/kg… e dizem ‘ainda me falta’… e tu respondes ‘tranquilo João que estamos há uma semana em altitude e em altitude os números são mais baixos, é um processo, em uma semana vais andar melhor e sobretudo quando desças ao nível do mar vais-te sentir ainda melhor, a forma chega pouco a pouco’. Às vezes há que dar-lhes essa tranquilidade para que confiem no processo. Se não sai bem mudamos ou a mim cortam-me a cabeça”,
conclui bem-disposto o Doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do País Basco.
No Algarve à procura do carinho dos fãs
Voltemos à pergunta inicial: pode Portugal ter um campeão de uma grande Volta? Além da parte fisiológica, do estilo inconfundível e da adaptação feita aos novos métodos de trabalho, há a questão da capacidade mental do atleta.
Neste aspeto é João Almeida que admite que “no passado talvez preferisse ir [às grandes Voltas] com outro líder pela questão de responsabilidade. Se não der para mim que se cumpram os resultados da equipa. Tenho sabido lidar com esse aspeto portanto é indiferente: se for só eu estou focado naquilo e se levarmos outros líderes podemos propor diferentes situações de corrida”.
Em 2023 João Almeida voltará a fazer Giro e Vuelta após assimilar bem a carga de duas grandes Voltas na mesma temporada. A grande mudança no programa é não fazer o UAE Tour, trocando por Maiorca e Volta ao Algarve [foi 9º na única presença em 2020]:
“Vou correr em casa, conheço o percurso e quero sentir o apoio dos portugueses. Se começar lá a época com o pé direito dá muito mais confiança e tem outro sabor.”
João Almeida
Portugal tem um campeão de grandes Voltas na forja, um corredor com qualidades físicas e mentais raramente vistas por cá, inserido numa equipa de topo mundial. João Almeida está pronto, veremos na Algarvia se os aficionados serão capazes de o empurrar para o que se espera seja um grande ano.
Por: Gonçalo Moreira
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