Craques Almeida e Ayuso lideram bloco anárquico na Vuelta
Diretores de bancada do universo digital são rápidos a sentenciar equipas e corredores. Ao longo do Giro de Itália e da Vuelta a Espanha tenho lido que o João Almeida não se sabe posicionar em momentos-chave das etapas.
O mesmo João que em 2020 teve como pior classificação em etapas do Giro um 28º posto num dia em que ganhou a fuga e até foi o campeão nacional o primeiro dos favoritos a entrar na meta.
A diferença para esse Giro?
Entrar forte e vestir de rosa ao terceiro dia, além de correr numa QuickStep que sem ter o poderio na montanha da atual UAE se dedicou a preservar a liderança o máximo de tempo possível. A UAE dá ares de QuickStep em termos de gestão dos ativos.
Joxean Matxin – antigo observador-chefe da QuickStep – tem incutido na UAE o espírito de que qualquer corredor está pronto para ganhar: esta época 16 ciclistas contribuíram para as atuais 40 vitórias.
No entanto, a QuickStep não teve um Tadej Pogacar que a obrigasse a modificar a estratégia nas grandes voltas; se Remco Evenepoel ganhar a Vuelta vai dar que pensar a Patrick Lefevere quanto a política de recrutamento e tática de corrida.
Tadej e Remco exigem um bloco estruturado, capaz de os levar sempre na frente e composto por atletas capazes de sacrificar tudo pelo líder. Na UAE isso apenas se vê com Pogacar; nas demais corridas são um grupo talentoso disposto de forma algo anárquica – viu-se no Paris-Nice e no Giro onde João Almeida liderou só no papel; em França viu McNulty correr por si e em Itália levou meia equipa focada em ganhar etapas.
Podemos ficar surpreendidos com o cenário que temos visto na Vuelta? Não.
Em dezembro Joxean Matxin disse-me que Marc Soler ia ter papel livre na Vuelta, além de explicar que gosta de ter mais do que um líder (artigo aqui). Sabendo que João Almeida sofreu no pós-Covid para se reencontrar fisicamente, antecipou a estreia de Juan Ayuso em grandes voltas.
A UAE partiu tendo a noção de que não podia ganhar a Vuelta, mas com o talento de que dispõe tem três ciclistas no top 15, lidera por equipas, ganhou uma etapa e marca a narrativa da prova graças a um fenómeno de 19 anos que luta pelo pódio.
Perguntei ao João Almeida, esta segunda-feira, o porquê de não ter entrado nas primeiras posições no Alto de Hazallanas.
Conservador na hora de arriscar nas estradas estreitas e perigosas desta zona do sul de Espanha (que ele tão bem conhece de aí estagiar), o João foi frontal ao reconhecer que as pernas têm ido de menos a mais, mas ainda não são as mesmas do Giro:
“Não sou estúpido e sei bem que é preciso entrar bem colocado nas subidas. Por vezes não tens pernas e é preferível ir ao teu ritmo. Para uns irem na frente outros têm que ir atrás e desta vez fui eu que comecei mais atrás.”
João Almeida
Curioso é que até Ayuso subiu “à Almeida” e durante o terceiro dia de descanso contou aos jornalistas:
“Depois de dois meses e meio a treinar com o João começo a ganhar alguns hábitos dele. Temos uma boa amizade, tenho aprendido muito ao lado do João”.
Que futuro para a UAE-Emirates?
Poderia a UAE ter ganho esta Vuelta correndo de forma clássica na proteção a Almeida e Ayuso?
Creio que não, já que Evenepoel, Roglic e Mas estão superiores; no entanto, é urgente que a UAE defina se quer ganhar voltas ou etapas com alguém que não seja Pogacar.
Para fazer o que a Jumbo fez no passado Tour ou o que a Ineos conseguiu no Giro de 2000 (etapas e geral) é preciso uma profundidade de plantel que a UAE ainda não tem.
Caso termine com Ayuso 4.º e Almeida 7.º a nota não poderá ir além de um “Suficiente”. Há talento para mais, mas falta organização, planeamento e investir em tecnologia (o duo Colnago-Campagnolo tem tido um ano difícil).
Até lá ficaremos com a sensação de que poderiam fazer mais ou não tivessem João Almeida a caminho do terceiro top 10 em quatro “grandes” consecutivas – quatro não fosse o Covid; quanto a Ayuso, está a viver à altura das expetativas que gerou em juniores e sub-23. Vai marcar os próximos anos do ciclismo mundial.
Finalmente um “etapón”
A etapa de Serra Nevada foi o dia de ciclismo que andávamos há duas semanas à espera. Na breve antevisão que fiz para o Guia da Vuelta a España do TopCycling projetei uma corrida com um percurso “descafeinado” e não me enganei.
Também disse que íamos ter dois dias de alto quilate e que ninguém tenha dúvidas de que a 20.ª etapa na serra madrilena será brilhante. A jornada rainha deu empate técnico entre Remco Evenepoel e Primoz Roglic, com o belga a superar dois desafios de carreira: etapas com muito acumulado após duas semanas de competição e o fator altitude com a meta aos 2500m.
“De ket van Schepdaal” – o menino de Schepdaal – está mais perto de vencer a Vuelta que tem controlado com a ajuda do parceiro desde juniores, Ilan Van Wilder, e de um conjunto de corredores que têm sido inexcedíveis para compensar as baixas de Julian Alaphilippe e Pieter Serry, fundamentais nas etapas duras.
Roglic e a Jumbo armadilharam a etapa, mas executaram mal um bom plano. Primeiro endureceram o ritmo no Alto del Purche, com a inesperada ajuda da Ag2r, e isolaram Evenepoel. Não contavam era que Roglic também ficasse sozinho a 19km do final quando tinha infiltrado Rohan Dennis e Sam Oomen na fuga para terem superioridade numérica.
Nenhum teve um bom dia e acabou por ser a QuickStep a controlar a fase crítica da subida final com um heróico Louis Vervaeke que descaiu da fuga para ajudar Evenepoel.
Conclusão: vamos ter uma grande 20.ª etapa na serra de Guadarrama, local da emboscada de Fábio Aru a Tom Dumoulin em 2015. Para a história se repetir Roglic terá que recuperar 1:34 a Evenepoel e Enric Mas precisa de ganhar ao belga 2:01.
Às vezes nem parece, mas o tão criticado Mas tem respondido aos críticos de luva branca e em Serra Nevada ganhou 36 segundos ao líder. Claro que os diretores de bancada foram rápidos a dizer que o ciclista da Movistar podia ter ganho minutos em vez de segundos.
É tão fácil escrever. Mais difícil é pedalar.
Por: Gonçalo Moreira
Fotografia: UAE Team Emirates, Jumbo Visma, Quick Step.
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